sexta-feira, 13 de maio de 2016

O Sol é Para Todos (Harper Lee) - Crítica e análise



Análise pré-leitura (sem spoilers)


Considerado um dos romances mais importantes do século XX e escrito por ninguém menos que Harper Lee, O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird) conta uma história com temas controversos como preconceito social, racismo e conformismo com a injustiça.

A trama se passa em Maycomb – interior do Alabama – no começo dos anos 1930 e é contada por Jean Louise “Scout”, a sensível filha de doze anos do advogado Atticus Finch. Scout narra a sua rotina na cidade rural e pacata, contando as aventuras envolvendo seu irmão mais velho Jem, seu melhor amigo Dill e seus vizinhos. Mas a sua vida passa a mudar quando seu pai se torna o homem responsável pela defesa do famigerado caso de Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar Mayella, uma mulher branca. A cidade, que antes se portava como um lugar amigável e com vizinhos simpáticos, mostra as velhas garras do preconceito e da intolerância.

O livro foi o ganhador do Prêmio Pulitzer de literatura em 1961 e teve uma adaptação cinematográfica ganhadora do Oscar de melhor roteiro adaptado em 1962. Além disso, teve uma continuação lançada ano passado chamada Vá, Coloque um Vigia (Go Set a Watchman), quebrando o silêncio de mais de 60 anos da autora. Harper Lee era amiga de Truman Capote (inclusive o ajudou a escrever sua grande obra A Sangue Frio) e faleceu no dia 19 de fevereiro deste ano, aos 89 anos.

A obra em si faz com que seus leitores levantem questionamentos sobre a história e sobre sua própria vida. Chega a ser estranho como a autora conseguiu escrever uma obra que se adapta tão bem aos problemas dos dias de hoje. Logo, além de ter uma excelente arte de capa, O Sol é Para Todos consegue sua marca exímia de obras clássicas que todos deveriam ler.

Rouxinol (ou Mockingbird, em inglês)

Análise pós-leitura


Essa análise é para as pessoas que já leram o livro. Aqui, farei algumas observações e explicarei algumas metáforas da obra. Se você não leu, recomendo que primeiro o faça, mas sinta-se livre para continuar.
           
O Sol é Para Todos traz muitas metáforas e simbologias durante a narrativa que ajudam a compreender a mensagem trazida pela história. 

O título original em inglês To Kill a Mockingbird – que pode ser traduzido como “matar um rouxinol” – traz em si o significado principal da obra e é citado algumas vezes durante a narrativa. Quando Scout e seu irmão ganham espingardas de ar comprimido Atticus explica seu ponto de vista para Jem: “Preferia que você atirasse em latas no quintal, mas sei que vai atrás dos passarinhos. Atire em todos os gaios que quiser, se conseguir acertá-los, mas lembre-se: é pecado matar um rouxinol”. Scout ainda ressalta isso ao dizer “foi a única vez em que ouvi Atticus dizer que alguma coisa era pecado”. O rouxinol em si representa a inocência porque, como diz a própria senhorita Maudie no livro, não destrói jardins e não faz ninhos nos milharais, apenas canta. Isso é representado de várias maneiras ao longo da história, com diversas situações em que pessoas inocentes são injustiçadas de alguma maneira – Tom que não mereceu ser preso, Boo Radley que era infortunado pelas crianças e até mesmo Scout e Jem que quase são mortos. Além disso, o título também é citado no final do livro (que já será explicado).

Já o título traduzido para o português remete à ideia de liberdade como direito universal de qualquer ser humano. O Sol é o direito à liberdade, e todos devem tê-lo independentemente da cor da pele, religião, origem, ou qualquer outra característica.



A cena do cachorro louco é carregada com todo o peso da situação delicada entre Atticus e seu cliente Tom Robinson. Atticus se mostra, para a surpresa de Scout e Jem, um exímio atirador ao ser obrigado a atirar no cachorro, e essa cena fica marcada na cabeça de Scout por muito tempo. Atticus deixa claro que não gosta e não quer atirar, mas não tem escolha e deve fazer isso – assim como o caso envolvendo Tom, em que Atticus diz que não se perdoaria nunca se não o ajudasse. Além disso, uma boa habilidade em atirar não serve para nada com uma arma descarregada, do mesmo jeito em que as habilidades de Atticus em direito não conseguem salvar Tom de um júri preconceituoso e racista.

O final dá sentido à mensagem inteira da obra. Ewell foi ridicularizado no tribunal e, mesmo vencendo a causa, perdeu toda a sua credibilidade e respeito dos seus amigos e vizinhos. Assim não tem nada a perder e tenta de forma desesperada se vingar de Atticus atacando seus filhos. Mas o inesperado acontece: Ewell é morto com uma facada na barriga. Apesar de muitos leitores ficarem em dúvida fica evidente que o autor dessa proeza foi Boo Radley. O xerife Heck afirma que vai abafar o caso e Atticus pergunta se Scout entende a razão disso. Scout responde gentilmente dizendo: “seria como matar um rouxinol, não? ”, revelando que entregar Boo pelo seu ato heroico seria o mesmo que matar uma criatura inocente. Ao balancear todos os acontecimentos do livro, as dores e as alegrias se equilibram com esse final agridoce, mostrando que na vida nem a dor ou a felicidade tomam o controle completo da situação – isso não soa como amadurecer e crescer?



Trechos que valem a pena serem citados:

“ Eu não gostava de ler até o dia em que tive medo de não poder ler mais. Ninguém ama respirar. “

“ Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto do vista dela. “

“ Tem gente que... se preocupa tanto com o outro mundo que não sabe viver nesse aqui, basta olhar na rua e ver o resultado. “

“ Nunca sabemos como realmente vivem as pessoas. O que acontece por trás das portas fechadas, os segredos... “

“ Há maneiras de resolver as coisas que você ignora. “

“ Ainda que tenhamos perdido antes mesmo de começar, não significa que não devamos tentar. “

“ Quando a gente quer pegar uma presa, é melhor não ter pressa. É só ficar em silencia que a presa fica curiosa e, tão certo quanto dois e dois são quatro, sai do esconderijo. “

“ As pessoas sensatas nunca se orgulham dos próprios talentos. “

“ A única coisa que não deve se curvar ao julgamento da maioria é a consciência de uma pessoa. “

“ As coisas não podem ser sempre como queremos. “

“ Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar. “

“ Ninguém precisa mostrar tudo que sabe. “

“ Às vezes precisamos mentir em determinadas circunstâncias, especialmente quando não podemos fazer nada. “

“ Uma multidão, qualquer que seja ela, é sempre formada por pessoas. “

“ Foi preciso uma menina de oito anos para fazer eles recobrarem a consciência, não foi? – perguntou Atticus. – Isso prova que um bando de homens ensandecidos pode ser contido, simplesmente porque eles continuam sendo humanos. “

“ As coisas nunca são tão ruins quanto parecem. “

“ Se só existe um tipo de gente, por que as pessoas não se entendem? Se são todos iguais, por que se esforçam para desprezar uns aos outros? Scout, acho que estou começando a entender uma coisa. Acho que estou começando a entender por que Boo Radley ficou trancado em casa todo esse tempo... é porque ele quer ficar lá dentro. “

“ Sr. Finch, há um tipo de homem em quem devemos dar um tiro antes mesmo de cumprimentá-los. Mesmo assim, eles não valem a bala que gastamos. “


“ As pessoas têm a mania de manter aas rotinas diárias até nas situações mais estranhas. “


Quer ver uma análise como essa sobre algum livro que você gosta ou quer conhecer mais? Coloque nos comentários!

sábado, 16 de abril de 2016

A Sangue Frio (Truman Capote) - Crítica e análise


O jornalismo literário é um âmbito da literatura que possui excelentes obras, e entre elas está A Sangue Frio, fruto de um trabalho de investigação e apuração jornalística feito em 1965 por Truman Capote – autor de Bonequinha de Luxo – com ajuda inicial da sua amiga de infância Harper Lee – autora de O Sol É para Todos.

Placa da cidade de Holcomb. Foto cedida pelo fotógrafo Jonathan Berry.

O livro conta a história do assassinato dos Clutter, uma família que vivia uma vida pacata em Holcomb, interior do Kansas, “lá onde cresce o trigo”. A família era constituída pelo pai (Herb Clutter), pela mãe (Bonnie Clutter) e pelos quatro filhos (Kenyon, Nancy, Beverly e Eveanna), sendo que apenas os dois mais novos (Kenyon e Nancy) ainda moravam com os pais na cidade. Tudo ocorria normalmente até a noite do dia 15 de novembro de 1959, quando os quatro foram assassinados de forma brutal sem nenhuma razão aparente. E o pior, pelo fato da família ser reconhecida e amada por praticamente todos da pequena cidade, o medo se instaurou com a dúvida de quem poderia ter cometido um crime tão cruel. Assim, uma investigação assídua começa, e cinco anos depois os dois autores do crime, Perry Smith e Richard “Dick” Hickock, são presos e executados.

Manchetes do jornal local do dia em que encontraram a família morta (esquerda) e do dia em que Perry e Dick foram executados (direita). Fotos cedidas pela Polícia de Garden City.

Processo de escrita

O trabalho não foi fácil. Durou cerca de cinco anos e rendeu em torno de oito mil páginas de anotações. Foram necessárias entrevistas com moradores da cidade, familiares e policiais, consultas a documentos, diários e cartas, e muita observação – inclusive da execução dos criminosos. Somando tudo isso à utilização da verossimilhança – maior proximidade possível com a realidade – o livro foi criado, o que deu liberdade para Capote dizer com categoria que inaugurou um novo gênero literário: o romance de não ficção. Também houve a necessidade de se aproximar dos autores do crime, Perry e Dick, para apurar o por que e como tudo aconteceu na fatídica noite do crime. Eventualmente, Capote se apaixonou por Perry Smith e criou um amor que terminaria em tragédia, pois Perry foi executado depois do julgamento.

Dick (à esquerda) e Perry (à direita). Fotos cedidas pela Polícia de Garden City.

Recepção da obra

A obra não foi bem recebida pelas duas filhas sobreviventes de Herb Clutter, Beverly e Eveanna. O argumento usado é que elas desejam imortalizar a vida deles e não o jeito que eles morreram. As duas sempre negaram todos os pedidos de entrevista feitos por Capote, pois não concordavam com o que estava sendo escrito por ele. Além disso, as irmãs tentam passar aos seus filhos a história do que aconteceu com a sua família de uma forma que preserve seu verdadeiro legado. Em compensação, o livro se tornou um best-seller rapidamente, e até hoje é um ícone do jornalismo literário e da literatura norte americana.

Túmulos da família Clutter. Ao meio de Bonnie e Herb, à esquerda de Nancy e à direita de Kenyon. Foto cedida pelo fotógrafo Jonathan Berry.

O legado

Depois do caso ser encerrado a cidade prestou homenagens à família. Foi criado em 2009 – exatamente 50 anos depois da tragédia – o Parque Memorial da família Clutter, com uma placa em memória à vida da família e à sua importância para a comunidade. O organizador da criação do parque foi Bobby Rupp, o garoto que na época do assassinato namorava Nancy Clutter. Bobby contou com a ajuda da comunidade por mais de um ano para realizar o projeto. O planejamento durou vários meses e houve uma campanha de arrecadação para a construção do parque que, com sucesso esplendoroso, obteve 23 mil dólares. Antes do parque, não havia nada além da casa dos Clutter para relembrar a família. (Você pode ler o texto da placa memorial, em inglês, neste link)

Placa memorial em homenagem à família Clutter.

Além disso, foi criada em 2015 a Bolsa Memorial Herb Clutter pela Associação Nacional dos Produtores de Trigo – associação cujo Herb foi o primeiro presidente. A bolsa consiste em um auxílio em dinheiro aos estudantes que buscam carreira na área da agricultura na universidade do Kansas.

Adaptações

O livro teve duas adaptações cinematográficas: um filme de 1967 chamado In Cold Blood, que narra o percurso dos assassinos; e um filme biográfico de 2005 chamado Capote, que acompanha a trajetória do escritor ao longo do processo de apuração e escrita do livro. Também houve uma adaptação para HQ chamada Capote in Kansas.

Afinal, foi certo escrever o livro?

Muitas pessoas argumentam que, apesar de ter feito uma bela obra ao escrever A Sangue Frio, Capote marcou de forma negativa a cidade de Holcomb e o caso dos Clutter para sempre. A cidade praticamente desconhecida por quase todos só apareceu no mapa depois do ocorrido e ficou conhecida como a cidade do assassinato da família. E os Clutter são muito lembrados, não pela sua importância na comunidade ou pelas proezas que fizeram, e sim pela maneira que foram mortos, o que para a família é algo doloroso. Além desses aspectos, também existem muitas críticas feitas em relação à apuração jornalística do caso, já que Capote era famoso por não gravar ou anotar nada durante suas entrevistas, e ainda afirmava conseguir lembrar de tudo com precisão. O mais curioso é que é quase impossível terminar a obra sentindo antipatia pelos dois assassinos – talvez esse também seja um motivo pelo qual a família desaprova o livro?

Apesar de tudo isso, é inegável dizer que A Sangue Frio é um clássico do jornalismo literário, escrito de forma magnífica e com uma história que prende até a última página.

Casa da família Clutter. Foto cedida pelo fotógrafo Jonathan Berry.

Trechos que valem a pena serem citados:

“ O inesperado acontece, as coisas às vezes mudam. ”

“ Quando a hora chega, ela chega. Não adianta chorar. ”

“ Até o fim da vida, tem sempre alguma coisa esperando, e mesmo que seja uma coisa ruim, que você sabe que é ruim, o que você pode fazer? Não há como parar de viver. ”

“ Nada é mais comum do que sentir que os outros tem participação em nossos fracassos, assim como é uma reação comum esquecer os que tiveram participação em nossos sucessos. ”

“ Mas quando a multidão viu os assassinos, com sua escolta de policiais rodoviários de casaco azul, ficou em silêncio, como se espantada de constatar que os dois tinham forma humana. ”

“ A verdade pode ser brutal. ”

“ Vocês estão me mandando para um mundo melhor do que este jamais foi. ”

Família Clutter. Foto cedida pela Polícia de Garden City.

Fica aqui meu singelo agradecimento ao meu professor José Faro, que me apresentou o livro, e aos meus colegas que discutiram sobre a obra comigo. Sem vocês isso não seria possível.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Escuridão Total sem Estrelas (Stephen King) - Crítica e análise


Analise pré-leitura

 

Stephen King consagrou seu nome na história da literatura de forma definitiva, e não foi por um mero acaso. Com dezenas de obras já escritas e extremamente famosas – como Misery, It e O Iluminado – seu talento continua surpreendendo a cada lançamento. E um exemplo de lançamento é o livro Escuridão Total sem Estrelas, lançado em 2015 aqui no Brasil, que reúne de forma majestosa quatro contos com narrativas fortes e chocantes.

O primeiro, intitulado “1922”, conta a história de uma família de três pessoas – mãe, pai e filho adolescente – que vive na fazenda. Apesar de parecer uma situação normal no início, tudo desanda quando pai e filho têm de tomar uma decisão mortal: abrir mão das terras da família ou da esposa e mãe.

O segundo, nomeado “Gigante do volante”, retrata uma história que apesar de tenebrosa, pode não ser tão difícil de se ocorrer. Tudo ia bem na vida de Tess – uma famosa escritora – quando o pior acontece: ela é estuprada. Sem reação e desnorteada, Tess resolve traçar um plano de vingança, revelando um lado de si mesma que nem ela conhece.

O terceiro, que carrega o nome de “Extensão justa”, conta a história de uma situação delicada, onde um homem à beira da morte tem a chance de estender sua vida com um pacto que levará a vida de outros à ruina. Mas será que realmente vale a pena?
E por último há “Um bom casamento”, onde a esposa descobre que uma caixa guardada na garagem pode dizer mais sobre seu marido do que os vinte anos de convivência com ele.

A edição lida, da Suma de letras, além de muito bem traduzida – algo que se não for feito com maestria, pode arruinar toda a ambientação -, possuí um design incrível, pois consegue transpassar todo o clima dos textos da obra: escuridão e medo.
Por fim, Escuridão Total se mostra mais uma excelente obra de Stephen King, levando seu leitor a momentos de incômodo e de reflexão usando contos de terror simples, porém extremamente envolventes e bem escritos.




Analise pós-leitura



Essa análise é para as pessoas que já leram o livro. Aqui, farei algumas observações e explicarei algumas metáforas da obra. Se você não leu, recomendo que primeiro o faça, mas sinta-se livre para continuar.

É preciso ter um fato em mente ao ler uma obra de um escritor tão renomado como Stephen King: nada é colocado no livro por acaso. Cada detalhe tem sua importância, ainda mais quando é uma história relativamente curta. E são esses detalhes que dão um significado importante – e as vezes metafórico – para as histórias de Escuridão Total.

O conto “1922”, narrado pelo fazendeiro Wilfred, conta toda a situação ocorrida com sua família, e desde o momento que o crime de matar sua esposa foi cometido, há uma figura que o acompanha até o final: o rato. Apesar de ser usado pela esposa falecida como instrumento para castigar Wilfred pelo crime cometido, este animal não foi escolhido à toa. O rato representa em muitas culturas a simbologia da perda e da traição – além de ser um animal que muitos deploram -, e essa representação é carregada até hoje na nossa cultura. Há, por exemplo, na cena final do filme O Infiltrado, um rato, simbolizando as traições durante o filme. Na cultura indiana, o rato é visto como a simbologia dos desejos, porém se não são controlados, nos tornamos egoístas, trazendo muitas vezes dor e sofrimento. Na cultura cigana, ele representa os desgastes e perdas. No livro, os ratos perseguem Wilfred até o fim, representando a culpa na sua consciência – pela morte da esposa e do filho – que em nenhum momento o abandona. Os ratos no fim do livro matam o fazendeiro, roendo-o até a morte sem misericórdia, mostrando não só que o filho e a esposa não o perdoaram, como também que ele mesmo não se perdoou ou aceitou o que ele fez. A culpa consumiu seu ser até o último instante, porém, já era tarde demais para desfazer seus erros.


“Gigante no volante” passa uma mensagem ao fundo que é extremamente assustadora por poder se encaixar na vida de qualquer pessoa. Tess se transforma completamente após o ocorrido, se transformando gradativamente de uma simples escritora para uma pessoa vingativa que vai atrás de tudo para poder apagar a existência de todos os envolvidos no estupro. Creio que a mensagem nisso tudo seja expor o monstro que existe dentro de cada pessoa. E o mais assustador, isso mostra como a linha que separa a bondade e a maldade dentro de cada um é tênue.

“Extensão justa” conta o que, no fundo, todos que estão à beira da morte desejam: mais tempo. Contudo, o conto passa uma lição de moral quando mostra o quanto as pessoas estão dispostas a sacrificar para obter isso, e o terror neste conto se encontra justamente nesse fator da história, pois Dave sacrifica não a sua vida, mas sim a de outras pessoas. Ele tem na mão a escolha, e movido pelo egoísmo e pela raiva, arruína a vida de uma família inteira para poder viver mais. No fim, Dave avista Vênus no céu, e diz para sua esposa fazer um pedido. Ela diz que já tem tudo o que quer, e Dave diz que também já tem tudo, porém, como consta no livro, ele afirma isso “pedindo mais”. O conto acaba aí, porém ele mesmo disse antes que “as coisas costumam se equilibrar no final”. Acredito que a magia dessa história se deva ao fato de tudo ficar suspenso no ar e assim transmitir essa filosofia. Afinal, vale a pena passar por tudo o que ele passou? Vale a pena conviver com a culpa?

E por fim, “Um bom casamento” passa uma mensagem semelhante à de “Gigante no volante”. Movida por circunstancias extremas, Darcy se transforma para colocar um fim em seu marido. Mas o que chama mais a atenção nessa situação é o fato de que, não importa quanto tempo você conviva com a pessoa, nunca será possível conhece-la totalmente.

No fim, Escuridão Total sem Estrelas conta histórias que são assustadoras não apenas pelo seu enredo de terror, mas também por apresentarem a possibilidade de se encaixar no cotidiano de alguém facilmente – afinal, que nunca se culpou, ou agiu de forma egoísta, ou mudou de forma extrema em situações difíceis? O que importa no fim de tudo, é você permanecer você mesmo, e não deixar que sentimentos ruins tomem conta do seu ser a ponto de mudar completamente a pessoa que você se tornou.

Trechos que valem a pena serem citados:

“ Tudo sempre pode piorar. “

“ O novo sempre se desgasta, e geralmente não demora muito. “

“ Dinheiro demais é uma tentação constante. “

“ Esperar que um adolescente veja a luz da razão é como fazer uma aposta arriscada em uma corrida de cavalos. “

“ Às vezes a fruta amadurece cedo demais, e uma geada a mata. “

“ No fim, somos todos pegos por nossas próprias armadilhas. “

” O veneno se espalha como tinta na água. “

“ ...e então começou a rir. Às vezes é tudo o que se pode fazer. “

“ Às vezes é melhor não deixar que certas coisas façam, parte de nossa vida. “

“ Quando você se arrisca, é forçado a supor uma coisa ou outra. “

“ É impressionante como a vida, algumas vezes, imita a arte. E quanto mais crua a arte, mais parecida fica a imitação. “

“ Todo mundo odeia alguém em algum momento. “

“ Nós nunca deixamos de querer aquilo que queremos, não importa se nos fará bem ou não. “

“ Merdas acontecem, e às vezes milagres também. “

“ Há uma primeira vez para tudo. “

“ O pensamento se partiu como um galho seco. “

“ E quando certas ideias entram na cabeça, é difícil tirá-las. “

“ Quando já se experimentou a coisa real, a fantasia não serve pra nada. “

“ Velhos hábitos custam a morrer. Na maioria das vezes, pensou ela, não morrem até nós morrermos. “

“ Você precisa sair antes que crie raízes. “

“ Sim, ganhei um bom dinheiro escrevendo minhas histórias, mas o dinheiro foi uma consequência, nunca o objetivo. “

“ É impossível conhecer alguém completamente, até mesmo aqueles que mais amamos. “


domingo, 24 de janeiro de 2016

O Velho das Cinzas


Era pleno outono, e as folhas alaranjadas coloriam os bosques de uma pequena vila em algum lugar da Europa. As casas, apesar de extremamente modestas – com seus acabamentos de madeira e paredes brancas – retratavam de forma simples e harmoniosa a combinação entre natureza e área urbana. O vento soprava de forma agradável, levando folhas para todos os lados da cidade. E o mais curioso, tudo parecia estar em um equilíbrio quase perfeito, criando uma paisagem tão bela que poderia ser de um quadro pintado a óleo na era renascentista.

E nessa pequena vila, havia um morador – de mais idade – sentado em uma cadeira, do lado de fora de sua casa. Com seus longos cabelos grisalhos ao vento e com olhos de alguém que já viu e presenciou muito em sua vida, ele observava, como que para se distrair, as pessoas ao seu redor. Ele passaria despercebido facilmente, se não fosse por apenas um pequeno e discreto detalhe: sobre seu colo, havia uma urna – discreta e toda azulada. Ele a carregava para todo lugar que ia, e ninguém sabia o motivo disso. Os moradores pouco sabiam sobre a origem deste cidadão peculiar, e não se atreviam a perguntar sobre seu passado – não apenas por medo dele em si, mas por receio de ser algo muito pessoal e delicado. O que se sabia era: ele morava lá havia um bom tempo; e ele carregava a urna para todos os lugares. Uma bagagem, ou talvez um fardo.

Subitamente, o velho checou as horas e se levantou, de forma que parecia estar decidido a ir a algum lugar. Ele pegou a sua urna azulada e sua mochila, se colocou a caminhar e atravessou a cidade, chegando a uma trilha, cujo o destino final é o topo de uma colina – a mais alta da região. A posição do sol revelava que a tarde estava chegando ao fim, transformando o azul do céu em uma cor crepuscular.

O caminho era fechado pela mata, e parecia abandonado. Porém, mesmo com as pequenas pontes de madeira velha, com as plantas crescendo em toda parte e com sua urna que nunca o abandona, o velho se sentiu confortável e feliz. O ar puro revigorou seus pulmões, o chão de terra macia e grama agraciou seus pés, o canto dos pássaros relaxou seus ouvidos e sua mente.


Uma série de memórias começou a passar em sua cabeça, e uma sensação estranha invadiu seu coração instantaneamente. Sentiu uma alegria sem igual, pois estava revivendo memórias felizes. Mas ao mesmo tempo sentiu uma pontada de tristeza, afinal, o que passou se foi, e não retornará mais. Enquanto as lembranças estavam em sua mente, uma lágrima brotou em seu olho e escorreu lentamente pelo seu rosto, caindo em cima de sua urna.

Depois de algum tempo caminhando e perdido em suas memorias, ele finalmente atingiu seu objetivo e chegou ao topo da colina. A vista era esplendorosa: o céu alaranjado, o sol se pondo, a vila ao fundo, as aves planando. O clima era de uma leveza surpreendente, do tipo que tira qualquer sensação ruim na hora. Porém, ainda existia algo a ser feito. O velho se abaixou, pousou a urna azul, e começou a vasculhar sua mochila. Depois de um tempo procurando, retirou dela um porta-retratos, com uma foto muito antiga – em preto e branco e extremamente gasta pelo tempo – de um casal jovem e belo. O jovem rapaz da foto é o nosso personagem em questão, e a jovem garota, sua falecida esposa. Ele olhou para a foto e sorriu - afinal, foram tempos bons, e mesmo que não seja possível revive-los, a memória continuará lá em sua mente para sempre, e no fundo, ele sabe que isso é o que importa.

Ele pousou o porta-retratos na grama macia e pegou a urna. Alguns moradores da vila conseguiam vê-lo lá de baixo, e se perguntavam o que estava acontecendo – alguns inclusive temiam pelo seu suicídio. Ele retirou a tampa da urna, e despejou ali, no topo da colina, com o vento soprando forte e com o pôr do sol ao fundo, cinzas. Esse tempo todo, ele carregava apenas as cinzas de sua amada, que há muito se fora. O vento levou as partículas, e as espalhou para todas as direções possíveis. Ele carregou esse fardo por muito tempo, e agora, finalmente, estava pronto para prosseguir com sua vida sem ele. Ele não a esqueceria, jamais faria isso, mas a partir daquele momento, ele escolheu deixar a dor se esvair, como as cinzas ao vento. A partir desse dia, os moradores da vila o chamariam de “o velho das cinzas”, e ele, viveria de uma forma mais alegre dali em diante.